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terça-feira, 29 de março de 2011

MIKE TYSON

No pombal português de Mike Tyson



Há um par de anos, Mike Tyson era o tipo que tinha mordido a orelha de Evander Holyfield no ringue de boxe, que andava metido em drogas e tinha violado uma candidata a miss América. Agora, converteu-se ao islamismo, tornou-se vegetariano e começou a dedicar-se à columbofilia. O pombal onde cria os pombos, nos arredores de Nova Iorque, tem azulejos do Benfica e bandeiras das quinas penduradas na parede. Assim fala o homem que teve tudo e perdeu tudo - menos um amigo, que por acaso é português.
Quando alguém chega à esquina das avenidas Tonelle e Manhattan, em Jersey City, arredores de Nova Iorque, é provável que se esqueça de que está nos Estados Unidos. O cruzamento é dominado por um enorme edifício pintado de verde e vermelho, com a palavra Portugal escrita a amarelo. Junto à porta, uma bandeira do país feita em borracha. No quintal, um azulejo com o escudo do Benfica. O prédio não tem mais de dois pisos, mas ocupa um quarteirão inteiro da cidade. É simultaneamente restaurante, ringue de boxe e pombal. Chama-se Tyson's Corner. Foi aqui que o maior pugilista do mundo depois de Muhammad Ali treinou durante anos. É aqui que ele cria pombos.«Gosto de pombos desde miúdo», diz Mike Tyson à NS" horas mais tarde num hotel de Manhattan, sentado num sofá de pele diante de uma janela com vista para a baía do Hudson. «Na verdade, foi por causa deles que eu comecei a lutar. A columbofilia era o desporto dos pobres e eu faltava à escola para roubar pássaros. Um dia, três miúdos apanharam um dos meus pássaros e partiram-lhe o pescoço. Então eu virei-me a eles e, pelos vistos, ganhei, porque nunca mais me chatearam.»O Tyson's Corner - que acolhe quase mil pombos - pode ter o nome do pugilista, mas o proprietário do espaço é um português da Murtosa chamado Mário Costa. Conheceram-se em 1982, quando Mike tinha 16 anos. «Havia nos anos oitenta muitos boxeurs em Jersey City e nessa altura eu pensei que abrir um ringue era uma ideia do caneco», explica Costa. «Um dia, apareceu-me aí o Cus d'Amato [que haveria de treinar Mike Tyson até morrer de pneumonia, em Novembro de 1985] com um miúdo que era muito promissor mas também muito indisciplinado.» Tyson tinha acabado de sair do reformatório, começou a praticar ali todos os dias. «Criámos uma ligação imediata porque eu criava pombos nas traseiras do ringue e o Mike gostava deles. No final dos treinos íamos sempre dar comida aos pássaros e conversar um bocado.»Foi nesses anos que Mike Tyson se tornou o Miúdo Maravilha. Ainda amador, ganhou a medalha de ouro em duas Olimpíadas juvenis e venceu quase todos os combates em que participou. Em Março de 1985 começou a carreira profissional, vencendo logo o primeiro combate por knock out. Dos 28 desafios seguintes, ganhou 26, mais de metade no primeiro round. «Até que o Cus morreu e aí as coisas viraram», continua Mário. «O Mike tinha 18 anos, não tinha pai, não tinha mãe e estava a ganhar muito dinheiro, sem ninguém que o orientasse. Nessa altura, ele começou mesmo a perder-se.»Tyson deixou de treinar no ringue de Costa, mas de vez em quando passava lá para dar uma vista de olhos aos pombos. O talento do rapaz para o boxe já não era só promessa, era certeza. Começaram a chamar-lhe Mighty Mike (Poderoso Mike, traduzindo à letra) e, em Novembro de 1986, tornou-se o mais jovem campeão do mundo de sempre da história do boxe. Tinha 20 anos, uma conta bancária de cinquenta milhões de dólares (35 milhões de euros) e era famoso. Além disso, era dono de uma técnica que haveria de fazer história. Defendia com as mãos altas e os cotovelos encostados um ao outro. Aos poucos, ia-se aproximando do adversário e surpreendia-o com um gancho direito nas costelas. Por fim, desferia um soco nos queixos, também com a direita. Em noventa por cento dos casos, ganhava por KO.O pior homem do mundoNo final dos anos oitenta, Tyson tinha estatuto de rei incontestado dos ringues. A imprensa era consensual: Muhammad Ali e Rocky Marciano tinham um sucessor à altura. «Não consigo imaginar uma vida mais excitante do que a que eu tive nesses anos. Mesmo que eu fosse astronauta, não seria tão entusiasmante como o boxe», diz. «Eu levava-me demasiado a sério, acreditava que controlava a minha vida, que a estava a conduzir. Era a testosterona a falar, sabes? Hoje acredito que tenho de estar preparado para o que a vida me destina, sei que não sou eu que a controlo.»Tyson continuava a ganhar todos os combates, mas a sua vida pessoal era, nas suas palavras, «uma balbúrdia». Em 1987, casou-se com Robin Givens, uma actriz em ascensão que já tinha namorado com Brad Pitt. Passado um ano, a mulher alegou violência doméstica e pediu o divórcio, recebendo uma indemnização de sete milhões de euros. Os treinadores com quem trabalhava não duravam mais de seis meses, eram despedidos uns atrás dos outros. Em 1990, depois de dezenas de vitórias, foi surpreendentemente derrubado por Buster Douglas em Tóquio. «Foram momentos muito negros», assume hoje, «havia muita cocaína à mistura».Em 1991, Tyson foi convidado para ser júri do concurso Miss América. No dia 19 de Julho ligou para o quarto de Desiree Washington, uma rapariga de 18 anos que representava o estado de Rhode Island, a convidá-la para uma festa. Foi apanhá-la ao hotel de limusina, trouxe-a para o seu quarto e violou-a. O tribunal condenou-o a seis anos de prisão, ele cumpriu três. Diz logo que não quer voltar a falar do caso, o que lá vai, lá vai. Mas depois atira isto: «Gostava de me conseguir arrepender, mas não posso. Se viver com remorsos não vou ser capaz de crescer, de desenvolver um objectivo de vida. Nunca penso: não devia ter feito aquilo, quem me dera voltar atrás. O que fiz está feito e pode parecer uma loucura, mas tenho de aceitá-lo, crescer a partir daí, seguir em frente.»Quando saiu da prisão, em 1995, toda a gente queria ver Mike Tyson de volta aos ringues. O primeiro combate, em Las Vegas, no fim desse ano, rendeu-lhe 45 milhões de euros. O pugilista parecia mais forte do que nunca, em Março de 1996 já tinha reconquistado o título de campeão do mundo. Foi por essa altura desafiado por Evander Holyfield, um peso-pesado que dava nas vistas, sobretudo no tempo em que Tyson tinha desaparecido da ribalta por estar preso. Em Novembro, encontraram-se e Tyson perdeu. Em Junho do ano seguinte, novo embate, com o episódio que toda a gente viu: Mike a morder a orelha de Holyfield e arrancar-lhe um pedaço. Isso valeu-lhe uma nova alcunha na imprensa - «o pior homem do mundo» - e uma suspensão dos ringues durante ano e meio.No início da última década, Tyson continuava a combater, mas toda a gente o acusava de brutalidade. Partiu o maxilar a um pugilista polaco, esmurrou outro depois de o ter derrubado em KO, voltou a ser preso por ter atacado violentamente dois automobilistas durante uma discussão no trânsito. Houve novas acusações de violação, que nunca chegaram a tribunal. Houve um teste de dopping que acusou consumo de drogas. Houve um casamento com Monica Turner, que acabou por causa de adultério. Em 2003, declarou falência, apesar de ter ganho 212 milhões de euros nos 15 anos anteriores. «Gastei tudo na farra.» Voltou a ser detido, por posse de drogas, em 2005 e 2007. «É curioso», diz, «quando estás no céu, tens sempre muita gente à tua volta. Quando desces aos infernos, ninguém vai contigo. Ninguém se quer afundar contigo, perdes a família, os amigos, ficas sozinho.» Ou quase. «O Mário, o Mário Costa agarrou-me mesmo quando eu ia a cair.»Conversas de pombalHoje há uma festa no telhado de um hotel em Park Avenue, Nova Iorque, e Mike Tyson é o convidado de honra. Raparigas vestidas de preto percorrem a sala com bandejas de bebidas esverdeadas, servidas em copos largos, cheios de gelo picado. Perguntam aos convidados se querem um soco direito - uma mistura de vodka, pisang ambon, sumo de lima e folhas de menta. Tyson entra na sala com um copo de chá gelado na mão. Discursa para um aglomerado de gente. Diz que deixou a bebida, as drogas, o sexo frívolo. Diz que está concentrado no que é importante. Depois beija a actual mulher e pisca o olho a Mário Costa.Mais tarde, Tyson haverá de nos confessar isto: «Quando olho ao espelho vejo um tolo, um tipo estragado que tenta refazer a vida aos poucos e poucos. Aprendi que era uma pulguinha egoísta, insegura e insignificante. Que tinha um ego enorme e uma auto-estima baixíssima.»Mário Costa não abandona a sala ao mesmo tempo que Tyson. Os socos direitos vão-lhe soltando as palavras: «O Mike ia-me visitando de vez em quando, e eu arranjei-lhe um quarto por cima do ringue, para ele dormir lá quando quisesse. Às vezes ele vinha, passava pelo ringue e dava uns conselhos aos miúdos que treinavam por ali. Mas do que ele gostava mesmo era dos pombos. Um dia adormeceu dentro do pombal e, quando o acordei, perguntei-lhe porque é que não se tornava criador. Ele ficou a pensar naquilo.»Tyson já se tinha convertido ao Islão quando estava preso, adoptando o nome Malik Abdul Aziz. As coisas estavam a chegar a um ponto insustentável e, nas suas palavras, sabia que tinha de mudar alguma coisa na vida. Mas a verdadeira viragem aconteceu a 25 de Maio de 2009. Nesse dia, a filha de quatro anos de Tyson, Exodus, foi encontrada inconsciente pelo irmão Miguel, de sete. A criança tinha estado a brincar numa passadeira de ginásio e, quando acidentalmente ligou o aparelho, uma corda prendeu-lhe o pescoço, acabando por enforcá-la. «Nesse momento, pensei que a vida tinha acabado. Mas depois percebi que a vida tinha acabado de começar porque agora eu tinha de viver para ela e tentar mudar o mais possível. Eu tive oito filhos e nunca fui um bom pai. Agora tenho de recuperar o tempo perdido, dar o meu melhor para lhes dar um bom exemplo.»Dez dias depois da morte da filha, Tyson casou-se num casino em Las Vegas com Lakiha Spicer, que hoje é a sua agente. «As pessoas acharam estranho. Mas ou eu casava logo a seguir ou então ia matar alguém.» E, nas semanas seguintes, tomou - segundo o próprio - as decisões que só agora começam a dar frutos. «Fiz uma peregrinação a Meca e senti-me iluminado, mas não de uma forma ingénua ou inocente. Não estou à espera que Alá venha ter comigo e me ofereça ouro, riquezas ou oportunidades. Percebi que tinha de sentir a dor e ultrapassá-la, tornar-me forte com ela.»No regresso do Oriente, decidiu ir passar uns dias ao apartamento que Mário Costa lhe continua a guardar por cima do ringue. Tyson chegou ao restaurante português que também existe no edifício e disse a Manuel Monteiro, o portuense que ocupa o balcão desde que o espaço abriu, há mais de vinte anos: «Manuel, acabou-se o bacalhau e o arroz de marisco para mim. A partir de agora, sou vegetariano.» O homem estranhou, achou que aquilo ia ser sol de pouca dura. «Mas olhe que já lá vão dois anos e ele mantém-se firme. Agora, quando sabemos que o Mike vem, preparamos-lhe uma travessa de peixinhos da horta.»Mário Costa voltou à carga com a ideia de Tyson ter o seu pombal. «E acabou por ceder quando eu lhe propus que o espaço se passasse a chamar Tyson's Corner», conta o português. «Sabe uma coisa engraçada? Eu e o Mike fartávamo-nos de comer pombos, era um petisco muito habitual no restaurante. Acho que ele de facto só conseguiu meter-se nisto depois de se tornar vegetariano. O tipo anda mesmo mansinho, mansinho. É só reparar como ele se torna num gatinho quando a mulher está presente. Faz tudo o que ela quer.»Quando era miúdo, o pugilista podia comprar rolas a 20 cêntimos. Hoje, tem uma vintena de grisalho-cachopas, a sua raça de pombos favorita, em que cada exemplar vale uns bons 65 euros. «Mas vale a pena», assegura Tyson, «os pombos são absolutamente fiéis, mesmo que tu os trates mal eles voltam para ti. São como bebés, tu esperas que eles venham ter contigo e tens de te preocupar com os maus ventos, a chuva, os falcões. Mas de repente aparece-te um que tem umas penas a menos, ou que está ferido, e tu percebes que ele é um lutador, conseguiu escapar-se de um falcão e voltar para ti. E isso é simplesmente maravilhoso.»Os pássaros de Mike estão fechados atrás de uma porta, com as letras Tyson's Corner retalhadas na madeira. Por baixo do pombal, subsiste a única exigência de Mário Costa: um azulejo com o emblema do Benfica. «É, eu conheço a história do Pantera Negra, aquele jogador de futebol que era uma estrela», diz Tyson. «O Mário está sempre a falar disso, ele adora o tipo e eu também gosto dele.»Ali ao lado, o ringue. Tem bandeiras de vários países espalhadas pela sala, cada uma a representar as nacionalidades dos pugilistas que Tyson derrotou. Também lá está uma de Portugal, e até é maior do que as outras, ainda que Mike nunca tenha defrontado um rival do país. Nem é coisa que possa acontecer algum dia, fazendo fé nas suas palavras. «Eu agora odeio o boxe», diz. «Quando era novo, praticava boxe, gritava com a imprensa e não queria saber da vida. Mas agora tenho filhos e não quero que eles passem pelas mesmas dores que eu passei. Tenho 44 anos, passei a vida inteira a ouvir dizer que era especial. E depois, quando me auto-analisei, a única conclusão a que consegui chegar é que não sou nada, sou totalmente insignificante.»O discurso é pesado, mas Tyson preserva um sorriso descontraído. Hoje ainda vai ter de almoçar com a família, à tarde tem pombos para cuidar, depois há-de correr um bocado pelo parque, porque precisa «de um corpo saudável para carregar a cabeça». O homem que teve tudo e a seguir perdeu tudo pode muito bem ter-se encontrado a si próprio no meio do processo. «Sabes o que faz de um homem um homem?», pergunta antes de sair. «A submissão. Quando nos rebaixamos perante alguém mais fraco do que nós, aí sim, estamos a ser homens a sério.»Os pombos do boxeurO canal Discovery está a exibir As Asas de Tyson. Seis episódios para explicar a paixão do pugilista pelos pombos.A columbofilia não tinha visibilidade à escala global desde que Robert de Niro ganhou o Óscar de melhor actor em 1980, com O Touro Enraivecido. No filme de Scorsese, De Niro deu corpo a Jake LaMotta, um pugilista do Bronx que criava pombos nos telhados de Nova Iorque. Agora, Mike Tyson repete a fórmula, mas em versão documental. Não é ficção, é paixão séria.O canal Discovery está a transmitir os seis episódios da série às sextas-feiras, às 23 horas. Neles, o antigo pugilista abre as portas do Tyson"s Corner, traz Mário Costa para a ribalta e apresenta as pessoas que o ajudam a cuidar do pombal: um tipo simpático chamado Vinnie Torre, dois irmãos de nome Roman e um rapaz português, Hélder Rodrigues, que tem 73 rolas e arranjou alcunhas para cada uma.Tyson é produtor executivo de um documentário que tenta sobretudo explicar o processo de treino e competição dos pombos-correio. Aos humanos exige-se disciplina e paciência, aos pássaros lealdade e capacidade de orientação.No entanto, em abono da verdade, é Mike Tyson que está no centro das câmaras, não são os pombos. Ele mesmo admite-o, mas vê nisso uma mais-valia - combater a ideia de que os pássaros que cria são ratazanas do ar. «Tenho consciência de que o programa é sobre mim, mas isso não me chateia nem um pouco. Isto é muito mais do que um passatempo, sabe? É algo que vou fazer até ao fim da vida, que me vai manter afastado de problemas. É algo que faz parte de mim e isso diz tudo.»Quando falou com a NS" sobre o documentário, Mike explicou a sua entrega sem papas na língua: «Estou falido, vivo à espera de receber os cheques, mas só me permito entrar em projectos que dignifiquem a minha imagem. Este é um deles. E, ainda por cima, revela ao grande público um mundo fascinante e desconhecido.»

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